INFÂNCIA. Para que serve a voz? Participação das crianças e dos adolescentes no processo de mediação*, **

Autora: Susana M. Rossin. Publicado en Revista Brasileira de  Direito das Familias e Sucessoes , N° 33, Abr/Mayo 2013. IBDFAM.

 

Este artigo destaca e descreve a importância da voz das crianças e dos adolescentes nos processos em que estiverem envolvidos. Em primeiro lugar, é realizada uma breve síntese da sustentação legal da participação delas e é destacada a mudança de paradigmas que aconteceu na legislação vigente nos últimos anos. Para esses fins, são desenvolvidos os conceitos do Paradigma da situação irregular e do Paradigma da proteção integral e brevemente são analisados os princípios que sustentam a “Ley de Patronato” ou “Ley Agote” (Lei argentina 10903 de 1919) e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança (CIDN) e é feita referência à Lei Nacional nº 26061 de Proteção integral dos direitos das crianças e dos adolescentes que derrogou a lei anterior e incorporou operativamente os princípios da CIDN e o novo paradigma ao corpo legal nacional. Com o fim de analisar as características e modalidades da referida participação, a mediação é caracterizada e, dentro dela, a mediação familiar. As ideias de quando, como e para que é considerada importante a inclusão da voz da criança são aprofundadas. Um dos princípios levados em conta ao longo do texto é o de focar mais na prática do que nas teorias que a sustentam. De tal maneira que são realizadas reflexões que derivam da prática de trabalhar com famílias e é desenvolvida muito brevemente a descrição de um caso de conversas colaborativas em mediação.

 

Palavras-chave: Infância – voz – multiplicidade – mediação familiar – conversas colaborativas – crianças –adolescentes.

 

This article highlights and describes the importance of children`s and teenagers voice in those processes in which they are involved in. First of all, a summary of the legal support in their participation is developed and the changes in paradigm happened in current legislation in the last years is emphasized. In that regard, to explain these paradigms changes, concepts of “Irregular Situation Paradigm” and “Comprehensive protection Paradigm” are defined and briefly discusses the principles behind the “Law of Trustees or Law Drain” (Law 10,903 of 1919) and the International Convention on the Rights of the Child (CRC) and referenced to the National Law No. 26.061 of Integral Protection of the Rights of Children and Adolescents which repealed previous legislation and incorporated operationally the principles of the CRC and the new paradigm to the national legal body. In order to analyze the characteristics of this participation, the mediation process, and the family`s mediation process within it, is described. We focus on the ideas on when, how and for what the importance of children`s voice is considered. One of the main principles taken into account throughout this paper is to focus more in the Dos rather than the theories that support them. Finally, following this described concept, there is an example of a family mediation case, where collaborating talks were applied.

 

Key Words: Infancy – voice – multiplicity – family mediation – collaborating talks – boys – girls – adolescents.

 

 

* Agradeço às famílias que me deram a sua confiança e seus relatos e aos meus professores e amigos Eduardo Cárdenas e Lino Guevara, pelo seu permanente apoio e pela sabedoria compartilhada.

 

** Este artigo foi publicado em Buenos Aires, Argentina, em novembro de 2012 na revista Sistemas Familiares y otros sistemas humanos da ASIBA (Asociación de Psicoterapia Sistémica de Buenos Aires).

 

*** Susana Mirta Rossin. Advogada, mediadora, orientadora familiar. susanarossin@yahoo.com.ar

 

 

 

 

 

 

 

“Quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, não há quem pare a voz humana. Se a boca lhe for negada, ela fala com as mãos, ou com os olhos, ou com os poros, ou por onde for. Porque nós todos, todos mesmos, temos algo para dizer aos demais, alguma coisa que merece ser comemorada ou perdoada pelos outros”. Eduardo Galeano

O livro dos abraços

 

“Mamãe, por que eu não posso tocar a lua?” Sofia. 2 anos.

 

 

1. Introdução

 

Este trabalho está baseado na experiência do trabalho com famílias (em mediação, orientação familiar e consultas), no exercício cotidiano de viver em relação com os outros e na profunda convicção de que a voz humana, voz sem idade nem tempo, é geradora de realidades. Parto da ideia de que a prática profissional fundamentada no desenvolvimento de diálogos abertos e inclusivos é o germe de uma sociedade pacífica e solidária. Para desenvolver o tema previsto, é útil o questionamento sobre o que significa a palavra infância.

 

A etimologia da palavra provém do latim, infans -ntis (da qual provém infante). É formada com o prefixo privativo in- anteposto a fante, particípio presente do verbo fari ‘falar’, ou seja, que infans significa literalmente ‘não falante’. De maneira que poderíamos dizer que, quando falamos de infância, falamos ou, pelo menos, falávamos, daqueles que não têm voz.

 

Em espanhol se chama infância ao período da vida que vai desde o nascimento até a adolescência. Em inglês tem um significado mais restringido, já que infancy é usada em referência aos bebês ou lactantes.

 

A metáfora que provém do latim foi uma verdade colocada em prática durante longo tempo e ainda hoje em dia é mantida de muitas maneiras. “Este cuidado pelo etimológico remete a etymon, que significa, em grego, o que é certo; porque os gregos consideravam que o certo de uma palavra é a sua origem, o momento inaugural em que foi pronunciada por primeira vez. Para Nietzche, apaixonado filólogo, a etimologia demonstra como as palavras supostamente literais são, na realidade, figuras poéticas antigas, fósseis prestes a ressuscitar: as verdades não são mais que arcaicas metáforas esquecidas” (Bordelois, 2005, pág. 39).

 

De fato e fazendo referência à esfera legal, até recentemente as crianças e os adolescentes[1], denominados menores, considerados legalmente incapazes e objetos de direito, deviam ser representados pelos seus pais ou tutores adultos, nas questões nas que estivessem envolvidos. Sua voz não podia ser escutada se não através da voz dos adultos.

 

As crianças eram denominadas “menores”, definida sua condição a partir de uma descrição negativa que refletia uma carência e não um atributo que os identificasse: menor era aquele que não era maior de idade. Como confirma Edson Seda: “faziam de conta que definiam, dizendo do menor, nesse conceito, não o que é, mas o que não é. Violavam realmente a regra aristotélica básica, de que eu defino uma coisa dizendo o que uma coisa é, jamais dizendo o que não é. Este vazio de conteúdo (ou essa opção deliberada) em termos conceituais gerou, em termos reais da organização social, um sistema de exclusão social, traduzido em políticas para menores, juízes para menores. … Quando falo de menor, falo do que as pessoas não são… jamais falo de sua substância íntima, de sua individualidade, de sua identidade ou de sua essência como sujeito” (1997).

 

A representação e a forma de proteção eram descritas e regulamentadas pela chamada “Ley de Patronato” ou “Ley Agote” (Lei argentina 10.903 de 1919). Qualquer problema social em que as crianças estivessem envolvidas era convertido em uma questão judicial (abandono, crianças ou adolescentes em conflito com a lei, crianças em situações de risco social ou vítimas de crimes, ou em infração com a lei penal), de aí a denominação deste enquadramento como “Paradigma da Situação Irregular”.

 

O Estado assumia uma função paternalista, através da qual os juízes cumpriam uma tarefa de reparação ou correção das “situações irregulares” nas que se encontravam tanto as crianças que cometiam delitos, como as que tinham sofrido algum tipo de maltrato, abandono ou abuso. Tinham autoridade para colocá-las em uma instituição. A prevenção consistia em distanciá-las de suas famílias para evitar perigos ou um mal maior e inseri-las em instituições que se propunham a reeducar, curar, criar ou proteger.

 

Este modelo gerou, ao longo do século, uma quantidade de crianças internadas em institutos assistenciais, penais, psiquiátricos ou de outros tipos, com a particularidade de que, privados de sua liberdade, não gozavam dos direitos e garantias que qualquer adulto em idênticas condições teria (por ex.: assessoramento jurídico, serem escutados e informados, etc.).

 

Em 1990, a Argentina incorporou no seu direito interno a Convenção Internacional dos Direito da Criança (CIDN) que tinha sido aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em novembro de 1989 e, com a reforma constitucional de 1994, o art. 74 inc. 22 da Constituição Nacional outorga a CIDN hierarquia superior às leis, isto é, hierarquia constitucional. Este novo estatus legal introduz uma mudança de paradigma e constitui um ponto de inflexão na forma de conceber a infância e a sua relação com o Estado, com a família e com a comunidade.

 

Do “paradigma da situação irregular” passou ao “paradigma da proteção integral”, que considera as crianças como “sujeitos plenos de direito”, com capacidades em desenvolvimento, responsáveis, titulares de direitos e garantias e de mecanismos que permitem exigir e demandar autoridades, juízes e família, o cumprimento dos mesmos. Tudo isto constitui o chamado “interesse superior da criança”. São incluídos, entre outros, direitos como os de serem informados e serem escutados nas questões em que estiverem envolvidas e que suas opiniões sejam levadas em conta.

 

Não obstante, e ainda que sancionassem leis provinciais ou locais que adotaram os novos princípios sobre infância (por exemplo, a Lei nº 114 de Proteção integral dos direitos das crianças e adolescentes da Cidade de Buenos Aires), a nível nacional a Lei do Patronato continuou vigente até que, em setembro de 2005, foi sancionada a Lei Nacional nº 26061 de Proteção integral dos direitos das crianças e dos adolescentes que derrubou a lei anterior e incorporou operativamente os princípios da CIDN e o novo paradigma no corpo legal nacional.

 

“Em síntese, a Convenção postula as crianças e os adolescentes como protagonistas de sua própria vida para que participem em todas as decisões que a eles forem concernidas. Trata-se do direito a expressar sua opinião e que sejam escutados, tanto em um procedimento judicial ou administrativo como em todos os âmbitos em que estiverem envolvidos, família, escola, comunidade em geral” (Unicef, 2003). A mudança do olhar da lei sobre as crianças permite que elas saiam lentamente da invisibilidade na que estavam imersas numa tentativa de devolver-lhes a voz.

 

2. Participação das crianças nas entrevistas de mediação

O que chamamos mediação?

A mediação é uma modalidade de resolução de conflitos não-formal, não confrontador, confidencial, na que há a tendência ao empoderamento dos consulentes através de um processo facilitado pelo(s) mediador(es). Ainda que existam procedimentos de mediação obrigatória que transformam o processo em um requisito para o início de ações judiciais (por exemplo, as leis de Mediação prejudicial obrigatória nº 26589, decreto regulatório nº 619/2010 de Capital Federal e nº 13951, decreto regulatório nº 2530/10 da Província de Buenos Aires), a essência da mediação é sua voluntariedade.

 

Existem muitas escolas de mediação e, com elas, maneiras diferentes de definir esse processo.

 

A escola de Harvard, cujos referentes mais importantes são Ury e Fisher, foca na negociação, diferencia o sujeito do problema e faz distinções entre posições (fechadas, irreflexivas, opostas, que fecham) e interesses e opções num procedimento estruturado e regulamentado, ainda que flexível. Tem como objetivo conseguir acordos.

 

A escola Transformativa de Bush e Folger foca na visão transformadora do conflito como uma oportunidade de mudança e de crescimento. Está centralizada na revalorização pessoal (empowerment) e no reconhecimento. A revalorização está relacionada com a autoestima e a conquista ou desenho de metas, alternativas, habilidades, recursos pessoais. O reconhecimento remete à possibilidade de escutar o outro, compreendê-lo, comunicar esta compreensão e agir conforme. O objetivo é conseguir a revalorização da própria pessoa e o reconhecimento do outro, transformar o conflito, ainda quando não há acordo.

 

A escola Circular Narrativa, cujos referentes mais importantes são Sara Cobb e Marinés Suarez, enfatiza a comunicação e interação das partes. Foca nas diferenças que têm as histórias contadas por cada um. Seu objetivo é armar histórias alternativas que narrem o problema desde outro ângulo e não o acordo em si mesmo.

 

A escola Eclética, cujo referente mais importante é o Dr. Eduardo Cárdenas, toma conceitos de todas as escolas mencionadas nos parágrafos anteriores e contém, em seus fundamentos, delineamentos baseados na cibernética da segunda ordem (Heinz Von Foerster, Bateson, Escola de Milão), na epistemologia narrativa (Anderson e Goolishian) e na equipe reflexiva de Tom Andersen.

 

Seguindo este modelo e guiados pela prática, poderíamos dizer que a Mediação é um processo para a paz entre as personas, entre os integrantes de uma família, entre os membros da sociedade. Pode ser realizada no Tribunal, no escritório do mediador, na escola. O importante é que as pessoas que participem do processo acreditem na Mediação.

 

É um processo que é desenvolvido num espaço de confiança e no qual são geradas conversas colaborativas, diálogos abertos que permitirão transformar as posturas antagônicas e confrontadoras, as verdades absolutas (posições), os olhares detidos no passado, as queixas, as necessidades, os desejos, os oferecimentos e as propostas.

 

Os consulentes, integrantes de uma família, no caso da Mediação Familiar, revalorizarão, exercitarão e/ou descobrirão as suas próprias habilidades e recursos para a autogestão para solucionar os seus problemas focando o olhar no futuro, em seus projetos e sonhos pessoais e familiares.

 

Para que estes objetivos sejam possíveis, é fundamental que os encontros reúnam todos os envolvidos: consulentes, família, rede familiar e social. Poderíamos  chamá-los de  entrevistas de “múltiplos agentes”, segundo a definição de Jakko Seikkula no Seminário Internacional “Diálogos abiertos en prácticas relacionales”, ministrado na Argentina em maio deste ano.

 

O mediador é o facilitador das conversas e parte integrante da equipe de trabalho que é conformada em cada entrevista. A tarefa da equipe é uma pequena obra de arte, um delicado bordado realizado com fios de múltiplos grossores e cores: descrições individuais controversas e controvertidas, emoções, silêncios, pequenos passos, avanços, retrocessos, reclamações, desejos, projetos. O progresso da obra irá fluindo com o crescimento gradual e empoderamento da família na gestão das soluções e terminará com uma nova descrição conjunta, pacífica e tranquilizadora da situação que convoca a mediação.

 

Nesta tarefa, serão levadas em conta as ideias de multiplicidade de vozes e perspectivas múltiplas. Quando falo de multiplicidade de vozes, faço referência à necessidade de que todas as vozes, presentes, ausentes, as mais fracas, as mais importantes, as internas, as externas, tenham um espaço na entrevista. Todas serão escutadas. As vozes não são somente aquelas com as que falamos, mas também as que estão em nosso interior enquanto escutamos.

 

“O falar ao outro ou aos outros pode ser descrito como uma conversa exterior, por outra parte, enquanto escutamos os outros falarem, mantemos com nós mesmos uma conversa interior. Se desejarmos que um determinado tema passe uma e outra vez das conversas externas às internas e vice-versa, poderíamos dizer que passa através da perspectiva de várias conversas interiores e exteriores. Bateson mostrou um grande interesse pela importância das perspectivas múltiplas: uma mesma questão poderia ser entendida de maneira diferente nas diversas perspectivas e, quando agrupadas (como neste processo reflexivo), estas diferentes maneiras de entender a questão poderiam criar novas ideias sobre ela” (Andersen, 2005).

 

Influem fortemente neste modo de encarar a mediação, as ideias do pós-modernismo, da construção social, do dialogismo e os princípios da hermenêutica. Com este formato, tudo o que foi dito sobre a presença das crianças no processo de Mediação Familiar é de aplicação para qualquer outro tipo de entrevista.

 

As crianças na entrevista

As crianças são personagens adoráveis e complexas, ternas, desafiantes, vulneráveis, ruidosas, caóticas, criativas, transparentes, espontâneas… Produzem em nós sensações, sentimentos e atitudes das mais variadas. Representam a realidade presente, o cotidiano, o futuro, a transcendência e também nosso passado, nosso envelhecimento e nossa criança interior, esquecida, escondida ou presente, determinante em nossa subjetividade. A infância é um conceito que vem variando através da história, no seu estatus legal, social, em seu papel dentro da família, na forma em que vem sendo cuidada ou descuidada, protegida ou submetida pelas instituições. Contudo, e apesar destas mudanças, mantém intacta a característica intrínseca de novidade, pureza e pensamento mágico: “Com os olhos abertos, vejo ao meu redor, mas quando fecho, vejo o que eu quero” (Canção infantil “Si cierro mis ojos”. DVD “Bubba descubriendo el cuerpo” – Primeros pasos producciones.)

 

Sobre a relação da criança e o adulto, Tonucci diz: “O longo período mais importante de toda a vida, no qual se sentam as bases sobre as quais vão ser construídas a personalidade, a cultura, as habilidades da mulher e do homem, é o período dos primeiros dias, dos primeiros meses e dos primeiros anos. (…) Ter em conta suas exigências e suas ideias pode comportar profundas adaptações e renuncias nos adultos.(…) Esta criança tão (…) difícil de escutar e de aprender, tem em si uma força revolucionária: se estivermos dispostos a nos colocar à sua altura e a dar-lhe a palavra, será capaz de nos ajudar  a compreender o mundo e vai nos dar a força para mudá-lo” (Tonucci, 2003).

 

Que lugar ocupam ou podem ocupar as crianças no processo de mediação familiar? Em que momento podem participar? Em que casos? Desde que idade? De que forma? Para quê?

 

Como vimos, a mudança de paradigma legal instala na sociedade o princípio pelo qual a voz da infância é um direito que deve ser respeitado e posto em prática. Contudo, não se trata só de uma questão legal, mas também de ressaltar o valor da linguagem, da polifonia, das relações, dos encontros humanos entre adultos e crianças. Somos nas relações.

 

ü  A partir de que idade as crianças podem participar?

A linguagem aparece desde o primeiro instante de vida, no olhar do bebê em direção a sua mãe, no contato dos corpos, nos gestos, no escutar, no estar com outros, no tato. É maravilhoso ver os pequenos de um ano dialogando entre si com seus monossílabos, risos e balbucios[2]. “A primeira coisa que aprendemos é respirar e a segunda, estar na relação”[3] (Seikkula, 2012). A relação é a linguagem, a linguagem é a relação. A visibilidade da voz da criança existe desde o mesmo momento de seu nascimento. (Antes ainda para alguns autores).

 

Colwyn Trevarthen, entre os anos 60-70, realizou estudos sobre a linguagem entre a mãe e o bebê pequeno e concluiu que os pequenos estão permanentemente em um diálogo ativo com a sua mãe e o seu pai e, inclusive, antecipam o final de uma frase com movimentos corporais, sorrisos, sons.

 

Com tudo isto quero dizer que as crianças podem participar das reuniões de mediação desde que são muito pequenas. A linguagem desse período será a linguagem do cuidado e do nutrício, da comunicação visual e do contato físico, do arrulho.

 

ü  Quando? Em que momento do processo de Mediação?

 

É conveniente a participação das crianças junto com os pais naqueles casos em que serão tratados temas cuja decisão ou resolução vai trazer mudanças nas suas vidas. É melhor recebê-las no começo do processo de mediação, antes que sejam tomadas as decisões sobre os temas em disputa e depois de ter obtido a autorização dos pais para convidá-las. É muito importante que as crianças saibam que seus pais estão trabalhando juntos para que todos estejam melhores.

 

Outro momento importante para recebê-las é no momento do fechamento, podendo (ou não) estabelecer soluções. É uma etapa de avaliação do que foi realizado, de informar às crianças dos acordos e decisões tomadas, do fortalecimento do casal parental e dos laços familiares.

 

ü  Como será a participação delas?

A participação das crianças será combinada e programada junto com os pais ou adultos responsáveis e, em geral, serão encontros conjuntos entre os adultos e as crianças. O espaço físico estará preparado para receber as crianças segundo a idade que tiverem. Será útil contar com alguns elementos adequados para as diversas idades: fantoches, carrinhos, blocos de montar, bonecos, lápis, folhas.

 

O mediador deve conhecer a informação que os pais, com antecedência, deram para as crianças sobre o processo de mediação e sobre a situação familiar. Também é muito importante que o mediador permita que os pais sejam nossos guias no que se refere às “leis familiares”.

 

O mediador não tem que ser um especialista em crianças para poder inclui-las na entrevista. Deve conhecer as etapas de desenvolvimento das crianças e suas características, fazer leituras adequadas sobre as necessidades de cada idade, e principalmente, ter experiência real de falar com crianças de todas as idades em diferentes contextos. De qualquer maneira, a base para que tudo saia bem é crer que a presença das crianças é necessária e útil nas entrevistas, sempre sob certas condições de cuidado e preparação do encontro.

 

O comportamento das crianças na entrevista, suas palavras, suas brincadeira e desenhos não serão interpretados; são simplesmente uma forma de linguagem na conversa que irá acontecendo. Um cuidado especial será tomado: respeitar quem não quiser falar. O silêncio é uma forma de linguagem.

 

ü  Que lugar as crianças ocupam na entrevista?

Esta pregunta é crucial. As crianças não chegam à entrevista para decidir, definir, desempatar, relatar quem tem razão. São incluídas para participar nas conversas colaborativas que permitam a construção de realidades diferentes das que vêm sendo construídas no centro da disputa.

 

As crianças não participam na Mediação para decidir o que os adultos não podem. É fundamental levar em contar que o papel dos pais como casal parental é o de assumir a responsabilidade de tomar as decisões que considerem adequadas para a família, tendo e conta as opiniões das crianças.

 

As crianças não devem assumir responsabilidades que não pertencem a elas. Colocá-las nesse lugar é armar uma armadilha em nome dos direitos da criança. As crianças não se interessam pelo conteúdo dos acordos: faz bem para elas saber que são escutadas, que suas palavras, emoções e necessidades são levadas em conta, mas principalmente, que seus pais chegaram a um acordo. Isso produz nelas um grande alívio[4].

 

3. Algumas reflexões pessoais a partir da prática

 

Penso em algumas entrevistas realizadas como mediadora ou orientadora familiar com crianças e adultos. A primeira coisa que me vem são nomes[5]: Amín, Gastón, Guido, Hernán, Santiago, Alejandro e Johana.

 

Amín, 16 anos, família islâmica, com sua madre Amira, problemas de sucessão entre os numerosos irmãos de sua mãe.

 

Gastón, 17 anos, com sua mãe Verónica e seu irmãozinho Matías de 10 anos. Duplamente órfão pelo falecimento do marido de Verónica e pai de seu irmão há sete anos. Ele começa a insistir para conhecer Nicanor, seu pai biológico que nega sê-lo.

 

Guido, 6 anos, sua avó Cocha, sua mãe Marisa e sua tia Eliana, todas querendo cuidar dele.

 

Manuel e Joaquín, de 17 e 13 anos respectivamente, tentando viajar a Espanha com sua mãe perante a negativa de seu pai.

 

Hernán, 13 anos e Javier, 8, com sua mamãe Isabella recém divorciada e simultaneamente viúva de Luis, o pai.

 

Santiago, 2 anos, no colo do pai e da mãe, alternativamente, durante duas entrevistas, abraçados, trocando carinhos. Foram organizados encontros entre filho e seus pais a partir de uma separação recente.

 

Alejandro, jovem punk de 15 anos com topete escondido no capuz do casaco e seus pais angustiados pelo slogan “não existe futuro”.

 

Johana, de 4 anos, que veio com seus pais Amalia e Darío. Ela quer ter o mesmo sobrenome do pai quando, na 1ª série, a professora fizer a chamada. Começamos o processo de adoção.

 

Todo primeiro encontro com as crianças e sua família me provoca uma cocegazinha interna, a mesma que sentia há 35 anos quando tinha 20 ou 25 alunos diante de mim¸ professora da 3° série, no primeiro dia de aula, no primeiro minuto da primeira hora na sala de aula, tudo para descobrir, tudo por construir. Coisas intensas passam nos encontros, embora no começo, muitas vezes, é uma espécie de nada incómodo.

 

Aparece um murmulho inicial, vozes, cadeira que são acomodadas, cubos de madeira que batem entre si movidos por mãozinhas pequenas, “palavras cheias de letras”, balbucios infantis, cumprimentos de boas-vindas, perguntas das crianças, o choro de um bebê, tudo é matéria-prima que será trabalhada como uma obra e em forma conjunta.

 

O contato visual é poderoso. Os olhos são a janela da alma, como diz uma canção infantil. Todos nos miramos um pouco antes de começar, enquanto flutua a pergunta “como estão?”. Esse contato que fazemos entre todos é o segundo momento vital da entrevista.

 

É maravilhoso olhar os pais olhando os seus filhos enquanto eles falam. Têm uma expressão de orgulho e ternura. Além disso, quando falam de seus filhos, desaparecem, por alguns instantes os gestos de ódio mútuo e aparece uma descrição comum da construção de uma obra conjunta. É percebido um clima diferente na entrevista quando as crianças que são mencionadas na fala estão presentes; as palavras são escolhidas com mais cuidado. Como se tirássemos uma foto familiar, todos se esforçam, todos nos esforçamos para sair bem.

 

Repentinamente, sinto que a conexão foi feita. É uma sensação forte de proximidade, aparece (ou tecemos?)[6] um fio invisível que vai desde o coração de cada um de nós até o outro. Nesse momento as coisas melhoram, começamos a tirar fotos espontâneas. Todos podemos ser no intercâmbio. Nós nos permitimos ser imperfeitos.

 

Aprendi a ter paciência, sei que em algum momento o fio aparece, permito-me flutuar tranquila na nebulosa inicial de desconexão, aridez e incerteza. A conexão aparece com certeza.

 

Quando comecei, as reuniões de pais com filhos me confundiam. Algumas vezes, sem experiência ainda e com pouca confiança no valor da construção em equipe, ficava tentada a exercer algum modo de maternidade. Com o tempo, comecei a curtir.

 

Em algumas ocasiões, sinto ou pressinto algum tipo de “pressão ou dominação” de alguns sobre outros. Deixo-me guiar pela intuição, se algo me incomoda ou deixa-me inquieta na entrevista, comunico, e também verifico a comodidade de todos.

 

O desenho conjunto do formato e temática da entrevista me ajuda a trabalhar mais tranquila. Aprendi, com a ajuda de meus sábios professores, que se a única coisa que perceber ou que me chegar do outro são suas imperfeições e não posso revertê-lo, não foi possível formar a equipe de trabalho construtor. Encontrei o meu limite, será o momento de dar por finalizada a tarefa de esta equipe. O trabalho em comediação facilita, entre outros, este tema.

 

Uma entrevista, muitas vozes

 

Luis faleceu faz um mês, em fevereiro de 2011, é o pai de Hernán e Javier. Morreu após três semanas de uma doença intensa. Tinha acabado de se divorciar de Isabella, a mãe de Hernán e Javier.

 

Nas entrevistas de mediação prévias ao divórcio, os filhos não estiveram presentes fisicamente, mas sim as suas vozes, com muita intensidade. Trabalhamos em equipe com outra mediadora. Foram conversas tristes, profundas e belas. As crianças sabiam que isto estava acontecendo, seus pais contaram para elas que estavam trabalhando muito para que toda a família estivesse melhor.

 

Os pedidos de Hernán e Javier para seus pais e os desejos de Luis e Isabella para seus filhos, ocuparam grande parte das conversas. Despois de muitos anos de desencontros, maltrato e dor, infidelidade e violência, Luis e Isabella recuperaram o diálogo. As vozes dos filhos puderam ser entrelaçadas com a presença e as palavras e as ações dos seus pais para a paz da família.

 

Tudo terminou com uma grande aposta nas conversas, Luis e Isabella descobriram que sim, que, ainda que divorciados, podiam se encontrar, compreender, amar de outra forma, pedir perdão, curtir a tarefa conjunta de ser pais, estar perto.

 

Um mês depois da morte de Luis, Hernán e Javier chegaram para uma entrevista quase arrastados por Isabella, com a companhia de duas tias, uma materna e outra paterna. Isabella aprendeu que as conversas fazem bem e, para isso vem continuá-las, esta vez com seus filhos. Hernán de 13 anos está muito rebelde, não escuta, nem olha, nem obedece e nem fala com a mãe. Javier de 8 anos, acompanha. As tias vêm para que as crianças saibam que a família completa está para ajudá-los e acompanhá-los. Hernán não quer falar, está bravo, distante, incomodado, incomoda. Javier acompanha.

 

Os adultos: mediadoras, mãe e família mantêm uma conversa e admitem o silêncio das crianças. Tem dor, preocupação, desolação, sobrecarga. Que sensação surpreendente para uma criança ver os pais chorarem! Sentir que eles são de carne e osso, escutá-los falar de suas penúrias, saber que eles são vulneráveis. Que força poderosa é a do amor em público, sentir-se querido diante dos outros.

 

Isabella está desorientada, ansiosa, quer que tudo esteja bem, está preocupada com o silêncio de Hernán. As tias contribuem com muito amor para todos e muita compreensão. Histórias são contadas, aparece Luis.

 

Também aparece um espaço para os desejos. Hernán quer jogar futebol na saída do colégio, não por isso se esqueceu do seu pai, nem vai deixar de estudar. Javier mostra o quanto gosta de desenhar e pede para fazer esportes todos os dias.

 

Isabella, sobrecarregada e assustada, escuta os pedidos de seus filhos. As palavras vão ocupando algum lugar na tristeza. Todos, incluindo a voz de Luis, estamos um pouco mais aliviados. A conversa vai em direção ao luto, passa pela ausência e termina com a ideia de suportar o passar do tempo para se sentir melhor. É decidido respeitar a vontade das crianças de não participar em conversas de Mediação se elas não desejarem participar.

 

 

 4. Infância. Para que serve a voz?

 

Então, e despois do que foi escrito nos pontos anteriores, pergunto-me novamente: para que serve a voz da infância na mediação? Algumas respostas poderiam ser:

 

Para que crianças e jovens, acompanhados por sua família e pela comunidade que pertencem, sejam treinados no armado de modelos inclusivos, geradores de movimento e de mudança.

 

Para que todos os integrantes da família possam se reconhecer como seres valiosos e únicos.

 

Para que as crianças, no âmbito cuidado da mediação, possam registrar e comunicar suas emoções, suas necessidades e seus pontos de vista, e sejam escutadas e levadas em conta por todos.

Para favorecer o exercício dos direitos e garantias das crianças, já que são titulares por lei e por direito natural dos seres humanos.

 

Para que na prática de compartilhar conversas colaborativas, diálogos abertos, crianças e adultos, compreendam e reconheçam o valor da palavra como construtora de realidades.

 

Para entender a participação como um processo de construção e aprendizagem conjunta, que contribui para o desenvolvimento de sociedades mais democráticas (Unicef, 2006).

 

Para que as crianças percebam os benefícios do dissenso e de manter ideias diferentes ou opostas em uma conversa sem que isto convoque uma guerra de pensamentos.

 

Para que o silêncio seja reconhecido como uma forma de linguagem.

 

Para que o problema que afeta uma pequena comunidade ou um grupo específico seja concebido como um problema público, ou seja, de todos e todas (Unicef, 2006).

 

Para que crianças e adultos em diálogo executem a sinfonia do encontro.

 

Para que crianças, adultos e operadores familiares, curtam a magia misteriosa das conversas.

 

Para apostar no poder das crianças para a paz, como seres multiplicadores de um modelo conversacional construtivo, germe de uma sociedade mais pacífica.

 

Considero que este foi o começo de uma conversa, o início de uma reflexão grupal. Podemos continuá-la juntos, para isso, deixo meu correio eletrônico: susanarossin@yahoo.com.ar.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

  • Andersen, T. (1994), El equipo reflexivo. Diálogos y diálogos sobre los diálogos, Barcelona, Gedisa.
  • Andersen, T. (2005), Procesos de reflexión: informativos y formativos. ¡pueden tomar prestados mis ojos, pero no deben quitármelos!, em: S. Friedman, Terapia familiar con equipo de reflexión, Buenos Aires, Amorrortu, págs. 39-69.
  • Andersen, T. (2001), Una colaboración, por algunos llamada psicoterapia. Vínculos llenos de expresiones, y expresiones llenas de significado. Sistemas familiares y otros sistemas humanos 17 (3), 77-87.
  • Anderson, H. (1999), Conversación, lenguaje y posibilidades. Un enfoque posmoderno de la terapia, Buenos Aires, Amorrortu.
  • Anderson, H. (2001), En la montaña rusa: un enfoque terapéutico de sistemas lingüísticos creados en colaboración, em S. Friedman. El nuevo lenguaje del cambio. Colaboración constructiva en psicoterapia, Barcelona, Gedisa.
  • Baruch Bush, R. A. y Folger, J. P. (1996), La promesa de Mediación, Buenos Aires, Granica.
  • Bordelois, I. (2003), La palabra amenazada, Buenos Aires, Libros del zorzal, 2ª. ed., 2005, pág. 39.
  • Boscolo, L. et al. (1989), Terapia familiar sistémica de Milán. Diálogos sobre teoría y práctica, Amorrortu Editores, Buenos Aires
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  • Unicef (2006), Cuadernillo 3. Participación de niños, niñas y adolescentes, Buenos Aires, Comunicación, Desarrollo y Derechos.

 

 

Notas 

 

 

 



[1] Esclarecemos que, por uma razão de espaço e para facilitar a leitura, cada vez que for necessário mencionar criança/s e adolescente/s, usaremos apenas criança/s.

[2] Youtube. Talking twin babies. Parts 1 e Parts 2.

[3] Jakko Seikula no SEMINARIO INTERNACIONAL. Fundaces. Houston Galveston Institute. Diálogos abiertos en prácticas relacionales. Respetando la otredad en el momento presente. 13 e 14 de maio de 2012. Buenos Aires. Argentina.

[4] Um dramático exemplo pode ser visto no filme iraniano  “La separación” (2011), dirigida e escrita por Asghar Farhadi. Um juiz, depois de uma longa disputa judicial de um casal por sua separação, decide escutar a filha deles e, na cena final, ele pede que ela escolha com qual dos pais quer morar. Direitos da criança?

[5] Os nomes dos consulentes foram trocados.

[6] Lembro a linda metáfora da escultura “Maman” (1999) da escultora e psicanalista Louise Bourgeois. Segundo os críticos de sua arte, ela via a aranha como um símbolo supremo da infinidade da vida, que se renova constantemente em uma teia que vai tecendo aos poucos.